quarta-feira, 26 de outubro de 2016

RASHÔMON (1950)


Há coisas que, nos meus 34 anos de vida, tenho vergonha de admitir. São muito poucas, mas há sempre alguma coisa que preferimos guardar só para nós. Como amante de cinema ou de filmes, tenho de admitir aqui perante a meia dúzia de leitores deste espaço que só agora, em Outubro de 2016, vi pela primeira vez um filme de Akira Kurosawa. Não sei por que razão esperei tanto tempo para me iniciar no cinema deste realizador, mas já o deveria ter feito há muito tempo. E não posso dizer que seja por algum tipo de preconceito. Simplesmente nunca surgiu ocasião, ou nunca me "lembrei" de ver qualquer que fosse o filme. Há uns dias estava a ouvir um podcast sobre cinema, que em cada episódio fazem um "profile" de uma figura do cinema. Um desses episódios era sobre Kurosawa. Mesmo sem nunca ter visto um filme dele, lá vi esse episódio. Ajuda o facto desse podcast ser apresentado por Alicia Malone. Se não conhecem a Alicia, ide à internet pesquisar. Uma mulher que respira saúde por todos os poros.
Lá fui "convencido" a começar a ver uns filmes do Kurosawa. Próxima tarefa: escolher o filme para começar. Acabou por ser fácil. O critério foi mesmo o da duração. O filme mais curto que tinha disponível era este Rashômon. Segui este critério pois era de noite e no dia seguinte tinha que me levantar cedo.
Bem, e o que há a dizer deste clássico? Tenho tantas notas na minha cabeça que nem consigo articular um texto com cabeça, tronco e membros, ou seja, o habitual.
A história do filme resume-se em poucas palavras. Quatro pessoas relatam um crime, cada um com a sua versão. Através de flashbacks vamos vendo o que se passou. Todas as histórias diferem uma da outra, o que se pressupões que há ali mentirosos. E que crime é esse? Um casal está em viagem pela floresta quando são interpelados por um homem, o grande Toshiro Mifune. Esse homem ataca o casal, violando a mulher e depois matando (aparentemente) o companheiro. E é este episódio que é relatado pelas diversas pessoas: um lenhador, um sacerdote, o próprio bandido, a esposa do falecido, e o falecido samurai que "fala" através de um médium.
Chegamos ao final e ficamos sem saber o que realmente se passou. Talvez seja mais plausível acreditar na versão final do lenhador, mas mesmo assim essa interpretação fica em aberto.
Talvez entendendo a cultura do Japão e do cinema japonês seja mais fácil entender o filme.
Mas este é o tipo de filme que deixa vários sentimentos a cada pessoa. Se para mim pode significar uma coisa, para o meu vizinho pode significar outra. E é isso que para mim é este filme. Nem tudo é preto e branco. Em última análise este filme pode ser uma reflexão sobre a vida em geral e todas as áreas cinzentas que nela existem.
Tecnicamente o filme é perfeito. Desde uma fotografia brilhante a todo o trabalho de câmara. Aqueles planos longos, entre os arbustos são qualquer coisa.
Depois há todos aqueles pormenores que elevam o filme. De reparar que durante o filme está sempre a chover (no tempo presente). E é nessas alturas que temos a visão mais pessimista e negra do ser-humano. No final dá-se o clímax. Quando os personagens encontram um bebé abandonado e o lenhador, mesmo pobre, aceita ficar com ela. Aqui é restabelecida a fé na Humanidade. A chuva pára e faz-se sol. Tem este final optimista. Apesar de tudo a vida não são só tragédias.
Ainda a referir as cenas de luta. Aqui não há coreografia espalhafatosas. Aqui temos dois homens que lutam pela sobrevivência. Quase parecem de improviso. O espectador consegue ver o cansaço espelhado nas faces dos personagens.


E caramba, que interpretações. Confesso que só conhecia o Mifune e já sabia do que ele era capaz. Uma espécie de Clint Eastwood do oriente. Mas aqui tem um papel mais "louco" com expressões de quase homem primitivo. Depois há o lenhador, interpretado pelo Takashi Shimura, com um desempenho tão sensível quanto subtil.

O filme serve ainda para tentarmos compreender o papel da mulher na sociedade japonesa. Aqui temos uma mulher que é violada e que o marido abandona pois já tinha "conhecido" dois homens. A vergonha. Claro que hoje em dia isso é inadmissível, mas dá que pensar sabermos que já existiu uma época onde se pensava assim. (Se bem que, mesmo em Portugal, e muito recentemente, vi um psicólogo aconselhar as meninas a não se exporem tanto pois os pedófilos violadores poderiam atacar. Ou seja, em pleno século XXI, numa sociedade, dita, evoluída, há pessoas formadas que culpam as mulheres e meninas pelas violações.)

Resumindo e concluindo, que este texto está mais confuso que um livro do Chagas Freitas, este é um filme obrigatório para todos os que gostam de cinema enquanto ARTE. Há aqui tanto mas tanto para aprender.
Vejam aqueles que são considerados os melhores realizadores de Hollywood de sempre, como o Spielberg, Scorsese, Tarantino, Coppola, etc. Foram todos beber aos ensinamentos de Kurosawa.
Um exemplo óbvio de inspiração deste filme: The Usual Suspects é todo ele inspirado e/ou copiado deste Rashômon. Usamos os flashbacks, sem serem na verdade flashbacks, até porque supostamente só um dirá a verdade, para contar um crime.

Um filme viciante, que agarra de início ao fim.

(Texto a editar, pois foi o mais difícil que alguma vez tive de escrever.)

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